O Leote Ramos Pereira nasceu em Borba há 83 anos. Como quase todos os da sua condição humilde, em vez da Escola onde o Salazar mandava ensinar a ler, a contar e a rezar, foi trabalhar. Descalço.
Ainda jovem que nunca foi, para sobreviver, roubou. A Justiça dos ricos (Senhor Juiz eu roubei para comer!), para que muitos deles não vissem perigar os seus privilégios de terem as terras ao abandono enquanto se entretinham no Estoril, condenou-o e prendeu-o. No Redondo.
Mas não o vergou na sua (imensa) alegria de viver. Marcado, escolheu para companheira a Ermelinda, irmã do Ti Juan, na altura também preso. Por roubar. Para comer, como o Leote.
E escolheu bem; a Ermelinda Maurício, para além de um nobre carácter, nunca lhe condicionou a sua força de viver, mesmo quando, embriagado, gastava em vinho e no jogo o pão da família.
O Mariano, filho de ambos, bem podia ter deixado registado a letras de ouro, como o trigo que seu tio ia buscar aos celeiros dos lavradores, a gloriosa luta do Povo Alentejano, tantas as qualidades que, ainda criança, já demonstrava possuir.
Os (novos) Senhores desviaram-no, primeiro com aquários e peixinhos; vermelhos, para se aproveitar a cor do sangue que jorrou das entranhas de seu pai e de seu tio quando os guardas, acreditando na justeza do seu comportamento pela lei e pela grei, os espancaram. Depois com o El Dourado do Canadá, para onde emigrou para alívio dos que se perfilavam para representar o Povo e dos que, em nome deles, lhe amoleceram o pensamento.
No véspera de Natal, bem cedo, à pressa e sem direito a velório, o corpo do Leote descia à terra. Dos imensos amigos poucos, muito poucos, tiveram conhecimento. Com o veemente protesto de quantos perceberam que, mesmo morto, um Homem para quem «a vida é uma História» mete medo aos que preferem que a vida seja um negócio.
E mesmo esses, desconhecerão que há um médico que lida diariamente com doentes com vontade de morrer - alguns até de se matar - para resolver os seus problemas, que consegue chegar ao coração dos seus irmãos pacientes graças ao que aprendeu com o Leote, «analfabeto, bêbado, ladrão». E «meio doido», como convinha acusar aos que não queriam que se conhecesse tudo o que o Leote sabia do viver. E do morrer…
A vida é uma história, insistia, enquanto partilhava com todos a sua e de seus irmãos de caminhada, na glória e no infortúnio, como que a apelar que se não recusassem a VIVER. Como ele!
«Sabes qual é a única coisa que trazemos connosco quando nascemos?»,
perguntou-me, no Café do Amiguinho, com o Julião a comentar já não bebes mais.
Com a família de minha mãe aprendi, a tempo, que «todos os Homens são meus irmãos» e com o meu camarada-pai a tentar avaliar com atenção, ou seja, a respeitar, os «marginais». Terá sido por isso que, em vez de desdenhar o convite que me fazia, já meio ébrio, o fixei com toda a atenção.
O olhar dele era profundo, falava com alma. Respondi que não, não sabia!
«É a certeza de que um dia havemos de morrer!»,
rematou doutoralmente, convicto do seu saber e… convincente!
Obrigado Leote, meu Irmão, por também teres sido meu Mestre! Quem dera que soubesse escrever «a História da tua vida», como merecias!
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