Com ele tentámos aprender não só os caminhos da Liberdade como, sobretudo, que esses caminhos têm um maior encanto quando atravessam os campos da Fraternidade e se deixam inundar pela grandeza da Simplicidade.
Já lhe estávamos gratos pelo que, com os Vampiros, nos tinha ajudado, ainda criança, a compreender o mundo. Acrescentámos a dívida, depois, com tantos e tantos gritos de revolta, de uma profundidade grandiosa que nos ajudou a moldar o ser e o querer.
Faço este testemunho em nome do Jerónimo Lagartixo, do Jónatas Borrego e do Manel do Asilo, do Redondo, seus irmãos maiores no respeito pela Fraternidade, e de outros companheiros que no Centro Cultural Popular Bento de Jesus Caraça tiveram comigo o privilégio de com ele aprofundar a Solidariedade, entre os quais é justo distinguir o Mestre Alexandre Nogueira e o João Godinho.
Ainda em nome da Mestra Filipa, de Viana do Alentejo, e do Mestre Álvaro, do Redondo, ambos Oleiros, que nessa qualidade homenagearam o Zeca; a primeira, em representação de todos os Oleiros alentejanos – à data (1980) cento e vinte e três -, ao receber das suas mãos, do Zeca, uma Cantarinha de Nisa com que as Associações Culturais que organizaram o 1º Encontro Regional de Olaria do Alto Alentejo quiseram assinalar a gratidão que os mesmos lhes mereciam; o segundo, em Portimão, numa Mostra de Cultura Alentejana, ao entregar-lhe, em nome dos Oleiros Alentejanos, um prato de sua autoria com uma dedicatória em que o comparava a Luís de Camões.
Também em nome dos Poetas Populares que nele se inspiraram, entre os quais o Ti Samuel Pavia Micaelo, do Povo de São Vicente, que já em 1982, no «Há Tanta Ideia Perdida…», pugnava por «um 25 de Abril novo… para o Povo», numa décima só alcance de um sábio.
E de tantos e tantos outros que aqui recordo nas pessoas do Adriano Correia de Oliveira, do Hermínio da Palma Inácio, do Soveral Martins, de meu camarada-pai e sua mulher minha mãe, e do Francisco e da Lisete Pinto de Sá, seus amigos, do Zeca, de sempre e para sempre.
E de meu camarada-filho; e de minha filha e minhas netas que, estou certo, o irão conhecer e reconhecer como um Mestre do Viver, um ser de excepção e um revolucionário de eleição, tal a dimensão universalista e intemporal da sua mensagem.
Nenhum deles, incluindo os vivos que continuam a lutar pelos ideais que nos irmanaram, me mandatou para o efeito. Mas não me seria possível atrever-me a «homenagear o Zeca que trago no coração» sem neles me inspirar para que a emoção me não domine a lucidez com que pretendo assinalar a nobreza do seu carácter e a grandeza do seu viver.
1.
Por diversas vezes Zeca Afonso esteve em Vila Viçosa para ajudar o Centro Cultural Popular Bento de Jesus Caraça na sua acção político-cultural, em duas delas cantando a plenos pulmões «o Povo é quem mais ordena».
Na primeira, em Abril de 1975, no fim da sessão que decorreu «no Ciclo», já bem depois da meia noite, nem sequer tínhamos jantar para ele, sua mulher e restantes companheiros entre os quais seu filho, ainda criança. Foram dormir – e comer – a expensas próprias a Estremoz!
Na outra, em Junho de 1980, no encerramento do 1º Encontro de Olaria, mais organizados, servimos-lhe – e aos músicos que o acompanhavam – um lanche.
Em ambas as situações não houve lugar ao pagamento de qualquer verba (cachet), excepto aos músicos (Júlio Pereira e Janita Salomé), em 1980.
2.
Outro significativo momento vivido com ele aconteceu em Coimbra, na Primavera de 1978 (ou 79?), no Teatro Gil Vicente. Acabáramos de chegar do Alentejo e, sem bilhete (esgotados), para entrar no «Gil Vicente» invocámos junto do porteiro a necessidade de lhe irmos (ao Zeca) transmitir um recado urgente.
Portas franqueadas, acompanhados pelo dito porteiro, dirigimo-nos aos camarins recordando a última vez em que nos encontráramos na Era Nova e a «desavença» em que nos envolvêramos por força da sua (não esperada) recusa em ir participar no Aniversário do Centro Cultural. Ainda tememos o pior mas não hesitámos. Afinal, o Zeca que queríamos abraçar era fraterno e solidário e teria sabido «perdoar» a nossa indignação face à sua recusa, pensávamos, enquanto chegávamos ao corredor de acesso aos camarins.
O porteiro nem teve tempo de chamar por ele, vislumbrando-me ao longe, abriu os braços, «gritou-me» e avançou ao nosso encontro desculpando-se repetidamente na presença de quantos estavam (entre eles o Soveral Martins) do comportamento que houvera tido para connosco, Centro Cultural, perante o meu assombro inicial que rapidamente deu lugar à comoção. Curiosamente, a frio, no regresso de Lisboa ao Alentejo, entendêramos como razoável e compreensível a sua recusa.
3.
Outra das recordações que aqui vou registar ocorreu na Costa Alentejana, junto a «sua casa», estou em crer que na Primavera de 1981.
Terminado o «Almoço de Trabalho» em que participaram dúzia e meia de militantes político-culturais, antes da despedida, agarrou-me pelo braço, pediu-me opinião em relação ao duvidoso mérito de um artista que lhe havia pedido a letra (e música) de uma canção (nova) para o seu próximo álbum, relatando-me a razão de ser da suspeita. Assim,
Na sequência do vergonhoso comportamento da Lurdes Féria no encerramento do Encontro de Olaria e da nota que publicara no Diário de Lisboa, ao encontrá-la, no Chiado, na presença do outro artista, o Zeca, tão solidário quanto generoso, envolveu-se numa acirrada discussão com a Jornalista, descompondo-a e criticando-a pela ignomínia com que, em seu entender, nos houvera cobarde e premeditadamente atingido. Perante a sua surpresa, em vez do esperado apoio do nosso camarada, recebera uma frieza e distanciamento que o Zeca nos adjectivou como «traição para connosco».
Mais, fez questão de me entregar um caderno de capa preta onde, a par do poema, com dedicatória, «À Lurdes Féria» e de novos poemas, assinalou o que houvera feito para o nosso «camarada», para minha análise e «decisão». Trouxe comigo o caderno e fotocopiei-o; o encargo, esse contornei-o: quando lho devolvi fiz questão de juntar, com um abraço de profunda gratidão pelo poema e a dedicatória, umas palavras que aprendera com um homem simples como nós, que reproduzo hoje como homenagem ao Zeca e aos Homens Grandes como ele, «maior que o pensamento»:
«a seguir às enxurradas é preciso tempo para as águas limparem e deixarem ver o fundo… só então podemos tirar conclusões.»
4.
Um último testemunho que julgo significativo para melhor compreender os limites da vida do Zeca, vivi-o no seu Funeral em Setúbal.
O cortejo fúnebre avançava para o Cemitério quando chegava, do «almoço» tardio, o Zé Mário Branco. Por decisão da viúva, só alguns tinham acesso às imediações do caixão, então já umas boas dezenas de metros e muitas centenas de pessoas à frente. Com o Jónatas e o Godinho, agarrei-o pela mão vencendo a sua «timidez» e arrastámo-lo por entre a multidão até ao lugar de justiça, junto aos restos mortais de nosso camarada, que, pressinto, então se revolvia com a sua (e outras!) ausências e com algumas presenças…
As águas já acalmaram e limparam. Está à vista de quem quiser … o «fundo». No caso do Zeca Afonso, com orgulho e emoção, cada vez mais nítido, percebemos o nobre carácter que lhe permitiu, com a genialidade, a simplicidade e a fraternidade exclusiva dos eleitos, «abrir janelas onde nem sequer havia paredes», como muito bem assinalou o Sérgio Godinho.
Daí que, acreditamos, um dia destes todas as vilas serão Grândolas no querer e fazer da nova aurora.
Com a ajuda do Zé Mário Branco, do Chico Fanhais, do Sérgio Godinho, do Fausto e de tantos outros.
E com o Zeca no coração. Sempre!
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